terça-feira, 4 de março de 2008

AS CHAVES DOS PRÉMIOS

O episódio é corriqueiro e conta-se rápido. As manhas, essas, fatais crueldades com que se encaram certo tipo de persuasões (alguns chamam-lhe erradamente vendas), são casos para reflectir prolongadamente.
Há três anos uma pessoa, não interessa quem, participou num concurso promovido por um conhecido supermercado. Na ânsia, uma vontade. Na expectativa, o mesmo desânimo de quem nunca recebeu nada de mão beijada. Acontece que, passados três anos, quando ninguém esperava, nem sequer a própria, é bafejada pela sorte (classifiquemo-la de madrasta) e recebe um telefonema anunciando a heróica recompensa... uma oferta disfarçada de vocheur.
Para descobrir tamanha felicidade em forma física, apenas teria de ir a uma unidade hoteleira da sua cidade e, com um código prontamente transmitido, fazer-se anunciar como a reclamante dessa generosa atribuição. E assim fez. Mas fê-lo com reservas e acompanhada.
À entrada é perceptível uma senhora impecavelmente fardada. Bem equipada, como convém. Perguntam-lhe o nome. Responde ser ela por quem procuram. Está feita a primeira investida da empresa.
Confirmam-se código e pormenores pessoais. Sorri-se muito. É de facto um privilégio esta oferta. Talvez apenas ao alcance dos bafejados pela sorte. Ou talvez não. Porque, afinal, os deuses que deram sorte distribuíram-na tão equitativamente que não param de entrar pessoas com semelhante prémio.
Passa para uma sala. Déjà vu. Seis mesas, outras tantas pessoas. É apresentada com pompa e circunstância ao seu mestre-de-cerimónias. Mais sorrisos, muitos sorrisos.
Perguntam os dados pessoais. Reconfirma-se o código. E apresenta-se o prémio. Claro como a água como convém. Será mesmo?
Na opinião do seu mestre-de-cerimónias apenas precisa de respostas para um questionário porque querem abrir mais uma agência de viagens. E não sabem bem onde. Por isso, querem ajuda. Que assim seja. Com paciência, embora sempre desconfiada, mas porque lhe ensinaram a ser educada, lá foi respondendo a tudo o que perguntavam.
A música. Onde é que entra a música. Bem. Em dois sítios distintos. Na rádio, passa música ligeiramente alta para que não se perceba a música que os outros premiados estão a levar. Quanto à outra música, ela vai sendo dada com sorriso e com vontade. Deixemos o mestre falar então.
Findo isso, e porque ela e quem a acompanhou estavam por lá, na opinião do mestre, seria uma excelente oportunidade para mostrar a sua empresa e as suas ramificações. Aí saiu-lhe o tiro pela culatra. Passou a haver música de onde ele menos esperava. Imaginem que os "premiados" pediram para que o mestre improvisasse o fim da partitura, numa vontade férrea para soltar o gemido final da viola que ia alegremente tocando. O homem ficou atrapalhado.
Lá foi acrescentando que a sua empresa é diferente, que não é igual às outras, que é mais honesta, e recusou-se a ir logo para o final da partitura. Insistiram, recusou-se. Azar o dele.
A noite estava feita um cão. Os outros premiados também não estavam a achar piada ao concerto. A premiada e o seu acompanhante levantaram-se, com a mesma cortesia com que acederam ir a tal encontro sortudo, e saíram. O mestre não vendeu nada naquela noite. Mas os premiados continuavam a entrar. Algum deveria achar piada à desenvoltura musical.
A última expressão do mestre ficou para a posteridade. Algures nos mais recônditos lugares da sua mente terá pensado: Não sei bem se os enganei ou se fui eu o enganado. Sem presunção da minha parte, creio bem que foi mais a segunda do que a primeira. Sabem porquê? Ninguém dá nada a ninguém. De borla, e sem conhecermos, então é fatal como o destino.

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